Idealizamos demais o amor? Descubra o que está por trás da busca pelo parceiro ideal.
- Danielle Bevilaqua
- há 2 dias
- 6 min de leitura
Uma análise profunda com base na psicanálise de Freud, Winnicott, Klein e outros autores para transformar sua forma de amar
Amar ou idealizar? Eis a questão na busca pelo parceiro ideal...

Idealizamos demais o amor? Essa pergunta se torna cada vez mais relevante num mundo em que relacionamentos são vividos entre expectativas elevadas e frustrações recorrentes. A cultura nos empurra para a busca do “parceiro perfeito” — alguém que nos compreenda sem palavras, que nos complete, que preencha nossas faltas com afeto constante e absoluto.
Mas o amor real, como vemos na clínica psicanalítica, raramente corresponde a esse roteiro idealizado. No lugar da completude, surgem angústias, inseguranças e muitas vezes uma dolorosa sensação de fracasso. Será que estamos tentando viver um amor que só existe na ficção? E o que o desejo de encontrar a pessoa “certa” realmente diz sobre nós?
É sobre esse conflito — entre o amor romântico idealizado e o amor possível — que vamos refletir à luz da psicanálise e da experiência clínica com centenas de pacientes ao longo de mais de duas décadas de escuta terapêutica.
O Amor Romântico: um ideal forjado pela cultura
A ideia do amor como plenitude não é nova. Desde os romances medievais até os roteiros contemporâneos de filmes, novelas e reality shows, somos expostos à narrativa de que existe “alguém feito para nós” — e que encontrá-lo trará um fim simbólico à solidão.
Esse modelo é reforçado por diversas frentes culturais e religiosas. Em sua análise crítica, Maria Rita Kehl destaca como o amor romântico alimenta uma fantasia de salvação narcísica: buscamos no outro aquilo que sentimos faltar em nós mesmos.
A partir do século XX, com o avanço da sociedade de consumo, o amor também passou a ser um objeto de mercado: aplicativos que prometem encontrar a “pessoa certa”, coachings afetivos que garantem fórmulas para a relação perfeita, influenciadores que vendem a imagem do casal ideal.
Nesse cenário, a figura do “parceiro perfeito” se transforma num ideal inalcançável, que muitas vezes nos afasta da experiência verdadeira do amor: a que implica contato com a realidade, com as limitações, com a alteridade.
Na clínica: quando a idealização vira sintoma
Na escuta clínica, os efeitos dessa idealização são visíveis — e dolorosos. Pacientes chegam com histórias de desilusões, repetições, relações que começam intensamente e terminam abruptamente, acompanhadas da sensação de “sempre escolher errado”.
🔍 Exemplo clínico (nome fictício): Camila, 29 anos, relatava nunca encontrar alguém “à altura”. Após alguns encontros, sua admiração se transformava em frustração: “Ele não me entende como eu esperava”, dizia.Durante o processo analítico, descobrimos que Camila projetava em seus parceiros a figura de um pai idealizado — um pai ausente na infância, cuja ausência ela tentava, inconscientemente, preencher com figuras amorosas perfeitas. O problema não estava nos outros, mas na expectativa que ela mesma construía.
Esse tipo de repetição é comum. O amor idealizado não suporta a frustração — e quando o outro mostra suas falhas humanas, o encanto se quebra. O que vemos, então, é a idealização como mecanismo de defesa contra o encontro com o real.
O que diz a Psicanálise?

🧠 Freud: amar é abrir mão do narcisismo
Freud nos alerta que amar implica, inevitavelmente, uma perda narcísica. Em “Introdução ao Narcisismo” (1914), ele observa que o investimento amoroso muitas vezes se dá no que reflete ou sustenta nosso ideal do ego. Isso explica por que buscamos pessoas que “nos entendam sem que precisemos explicar”, ou que “tenham tudo que admiramos”.
Mas, à medida que o outro se mostra como sujeito — com vontades, falhas e diferenças — essa projeção perde força. E o que sobra pode ser a sensação de rejeição, de inadequação, de que o amor “não deu certo”. Freud chama atenção para a dor que o amor verdadeiro pode provocar: ele confronta o ideal com a realidade psíquica do outro.
🧠 Melanie Klein: ambivalência e perda do objeto ideal
Klein contribui com sua teoria das posições psíquicas. Na posição esquizoparanóide, amamos aquilo que idealizamos e odiamos aquilo que nos frustra. Na posição depressiva, começamos a integrar: o outro é bom e mau, frustrante e acolhedor.
Quando idealizamos o amor ou o parceiro, estamos operando numa lógica infantil: queremos o objeto totalmente bom, ideal, mágico. Mas amar alguém é lidar com a sua complexidade. É perder o “parceiro perfeito” para amar o parceiro possível.
🧠 Winnicott: o verdadeiro self só ama quando pode ser
Winnicott nos ensina que só é possível amar verdadeiramente quando o self pode existir com autenticidade. O amor real acontece quando posso “estar só na presença do outro”. A idealização, por sua vez, impede o encontro real, pois exige performance — tanto do outro quanto de si mesmo.

Cultura e idealização: como nos desconectamos do amor possível
A cultura atual, sobretudo nas redes sociais, estimula um modelo de perfeição que é mais um reflexo do mercado do que da natureza humana. Casais se transformam em marcas; relacionamentos se tornam vitrines.
📌 Referência de Betty Milan: Betty Milan nos lembra que vivemos hoje “o espetáculo do amor”. Em vez de viver o vínculo, muitos buscam encenar o ideal: o relacionamento perfeito para os outros verem. A busca pelo “parceiro perfeito” é, assim, menos sobre amor e mais sobre imagem.

O amor real: imperfeito, mas possível
O amor real não é o fim da solidão, mas o encontro entre dois sujeitos incompletos que decidem compartilhar suas faltas. Ele nasce quando podemos renunciar ao ideal, tolerar a frustração, sustentar a presença do outro — não como um complemento, mas como alguém que também deseja, sofre e sonha.
André Green nos convida a pensar o amor como algo que existe entre dois vazios: não nos completa, mas nos move. É nessa tensão entre o que falta e o que se constrói que o amor verdadeiro se estabelece.

Conclusão: transformar a forma de amar começa pela escuta
Se você tem vivido relacionamentos frustrantes, se sente que sempre “escolhe errado” ou se cobra por não encontrar o parceiro ideal, talvez seja o momento de se perguntar:✨ Estou amando o outro ou a imagem que criei dele?
Transformar a forma de amar começa com a escuta de si. Compreender suas expectativas, sua história, suas projeções. E isso é possível — com tempo, com cuidado e, muitas vezes, com o auxílio de um processo terapêutico.
No meu blog e nas redes: psicóloga e psicanalista - Psi Danielle Bevilaqua, você encontra conteúdos pensados para quem deseja relações mais conscientes, vínculos mais reais e um contato mais verdadeiro com o amor — em si e no outro.
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📚 Leituras Recomendadas
📕 “Amor e Psique: estudos de psicologia profunda” – Nise da Silveira
Por que ler: Nise traz uma leitura simbólica do amor e dos afetos a partir de mitos e da psicologia profunda. É um convite a pensar o amor para além dos ideais modernos e dentro da complexidade psíquica do ser humano.
📘 “Amor, desejo e dominação: o discurso amoroso em psicanálise” – Elisabeth Roudinesco
Por que ler: Uma obra fundamental para quem quer compreender como o discurso amoroso é construído cultural e historicamente — e como ele impacta a forma como nos relacionamos.
📗 “O amor é um cão dos diabos” – Charles Bukowski (com cuidado crítico)
Por que ler: Embora fora da psicanálise, essa coletânea poética traz um olhar cru e não idealizado sobre o amor — o que pode funcionar como contraste interessante à cultura da perfeição nos relacionamentos.
📙 “A experiência do pensamento” – Maria Rita Kehl
Por que ler: Este livro traz ensaios potentes, inclusive sobre o amor, narcisismo e a perda do ideal, alinhando-se à crítica feita no texto sobre o amor como projeção narcísica.
🌐 Referências Externas (Links)
Por que acessar: Ana Suy é uma das autoras contemporâneas que melhor articula psicanálise e amor. Seus textos são acessíveis e profundos, ideais para quem quer refletir sobre o amor real, o medo e a idealização.
Por que ouvir: Esse podcast aborda temas difíceis de forma acolhedora e tocante, incluindo episódios que falam sobre como o amor, longe do ideal, se constrói no limite da perda, da ausência e do real.
Por que acessar: Um olhar teórico e crítico sobre como o amor se manifesta na sociedade contemporânea, com base em psicanálise e filosofia. Excelente para quem deseja aprofundamento acadêmico sobre o tema.
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